Queridos, esticamos a vida!

O episódio aconteceu no século passado, durante entrevista coletiva na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Em pauta, os indicadores de vendas do setor. A certa altura, um dirigente da entidade soltou a piada. Ele atribuía à indústria farmacêutica a culpa pelo fim das uniões da vida toda. Sem remédios, os humanos morriam cedo e os matrimônios duravam. Foi a longevidade que inviabilizou o cônjuge único e abriu caminho para o segundo, o terceiro e quantos mais casamentos viessem. (Deixemos de fora a evolução dos costumes, a emancipação feminina, as transformações da era do conhecimento. São assuntos para outra crônica, afinal.)

A historinha volta agora quando a pauta é previdência. Não só medicamentos e vacinas, mas outros aspectos da vida moderna – saneamento básico e receitas para um corpo saudável, por exemplo – ajudaram a elevar a esperança de vida da população, década após década. No Brasil dos anos 1960, dificilmente um habitante passava dos 55 anos. Hoje, chegamos fácil aos 75. O IBGE estima em 75,2 anos a expectativa média de vida no país. Homens param nos 71,6 anos; mulheres vão até 78,8.

Quem chega hoje aos 38 anos, a nova meia idade, terá quatro décadas de vida pela frente; um jovem adulto de 30 pode contar praticamente meio século adicional. Esse presente, a vida esticada, no entanto, requer preparação. É como diria o Homem Aranha: “Grandes poderes exigem grandes responsabilidades”. Não se trata somente de permanecer vivo, mas de existir com qualidade. Até o fim.

O Rio de Janeiro, por exemplo, não esquece de um lendário personagem da (im)previdência chamado Jorginho Guinle. Famoso local e internacionalmente pela boa vida e pelas belas namoradas, ele nasceu em 1916 numa das famílias mais ricas do high society brasileiro. Àquela época, a expectativa de vida aqui nos trópicos não passava de 35 anos. Jorge Eduardo Guinle, que teria herdado fortuna de US$ 100 milhões (em dinheiro de hoje, US$ 2 bi), orgulhava-se da rotina de nenhum trabalho e muitas festas, carrões, bebidas, viagens. Dizia ter se relacionado com um rol de estrelas de Hollywood, entre elas Veronica Lake, Lana Turner, Rita Hayworth, Kim Novak, Romy Schneider e Marilyn Monroe.

Um modelo improvisado de previdência privada

Guinle foi precursor de um modelo tão improvisado quanto equivocado de previdência privada. Ele dividiu sua fortuna com base numa expectativa de longevidade que não se confirmou. Pretendia nadar em fartura até os 75 anos – sem pegar no pesado. Mas faltou combinar com o Criador.

O maior playboy brasileiro durou 13 anos além da conta. Quando morreu, morava de favor no apartamento de uma de suas ex-mulheres, comia de graça no Copacabana Palace e se tratava de um aneurisma na aorta abdominal no Hospital Federal de Ipanema. Na última entrevista, ele contou ao jornalista Cristiano Dias, da “Revista AOL”, que vivia com uma aposentadoria de R$ 1.588. Batia ponto na companhia de seguros da família. “Nunca me passou pela cabeça que viveria tanto. Calculei mal e gastei tudo antes da hora”, admitiu com sinceridade desconcertante.

Com a saúde deteriorada e sem dinheiro, foi internado num hospital público. Recusou-se a passar por uma cirurgia com chance de sobrevivência de 1%. Conseguiu alta e foi para o Copa, hotel que pertenceu à sua família e onde viveu por anos. Hospedou-se na suíte 153, de frente para o mar, escreveu o “Estado de S.Paulo”. No último almoço, comeu estrogonofe e tomou sorvete de framboesa. À noite, assistiu à novela, tomou chá em louça inglesa. Faleceu às 4h30 da madrugada de 5 de março de 2004.

O fracassado projeto de vida próspera até o fim fez de Jorginho Guinle uma lenda urbana carioca. Mais de uma década após a morte, sua história ainda serve para embasar uma crônica da velhice planejada. É alerta essencial nos dias hoje, em que a a expectativa de vida aumentou, enquanto a aposentadoria oficial encurta.

Por Flávia Oliveira

Jornalista especializada em economia e temas sociais. É comentarista do telejornal "Estúdio i", do canal Globonews. Assina coluna no "Segundo Caderno" do Globo. No jornal, foi substituta da colunista Miriam Leitão por cinco anos. De 2006 a 2014, foi titular da coluna “Negócios & Cia”. Integra o Conselho da Cidade do Rio de Janeiro, a convite da prefeitura; é membro do conselho consultivo da Anistia Internacional Brasil.