1° de abril: sim e daí

Acordei atrasada. O celular (há quanto tempo mesmo a gente deixou de dar corda no despertador e passou a usar o celular?) não tocou. Apeio das cobertas, deixo para tomar o café no trabalho e corro pela calçada rumo ao transporte público mais rápido àquela hora. Mesmo o metrô sendo pontual, espantou-me que estivesse com metade dos passageiros de costume. Me acomodei no assento ao lado do lugar preferencial de idosos, gestantes e deficientes, ocupado por um jovem com uniforme de colégio de Ensino Médio. Na primeira parada, entra uma idosa de cabelos lilás.

O guri, com um piercing no nariz e um par de fones de ouvido e-n-o-r-m-e-s, se levanta para a mulher descansar o corpo frágil. Na saída, ainda vejo o moleque ajuda-la com as sacolas de compra. Fofo demais. O mundo ainda é um lugar bom de viver. Apresso o passo, consigo entrar no elevador do edifício, encravado no Centro da cidade, com a ajuda de um rapaz engravatado que segurou a porta com a mão. Corajoso. Agradeço e penso, com dificuldade de me equilibrar no salto fino, que ainda há delicadeza no mundo.

Passo o crachá na porta automática que se abre ao paraíso refrigerado da recepção. Me aboleto na baia, tiro da mochila de rodinha o laptop, abro o e-mail, em que um alerta do banco me notifica que as contas do mês foram pagas em débito automático. “Ufa!”, a expressão de alívio aconteceu ao mesmo tempo em que quase engoli a água com xampu, ao acordar do meu devaneio embaixo do chuveiro do que seria um dia perfeito: metrô vazio, atos diários de gentileza e cordialidade, sem contas no vermelho, o cabelo lindo, o ar-refrigerado da recepção tinindo.

A perfeição não existe, ainda que a cabeça da gente insista em nos pregar peças e construir mentiras sinceras no 1º de abril. Mas o que seria faltar com a verdade? Quão danoso pode representar a criação de uma versão que não corresponde aos fatos? Para o compositor Cazuza, a mentira interessa. Vale se aproximar o outro da paixão e dos afetos. Os ingleses costumam dizer que no amor e na guerra vale tudo. É isso. A medida da mentira é quanto de mal pode fazer ao outro.

À filha, ensino que vale a mentira social. “Imagina como a vovó ficaria triste, se você disser que não gostou do presente que ela deu?”. O médico que recomenda ao paciente terminal voltar para casa a fim de ficar mais forte para a futura cirurgia é um mentiroso? A verdade, assim como a mentira, de fato não existe. Ou existe de acordo com o lugar de onde se fala. Verdade e mentira pertencem ao espaço, social e territorial. De fato, pertencem também ao tempo, da tradição e de gerações. À ética e à moral de um momento histórico-social. Há verdades falsas. São as que ferem, negligenciam o bem-estar alheio. E há genuínas inverdades. As que não economizam em afetos e delicadezas. Cazuza preferiria essas últimas.

Por Roni Filgueiras

Roni Filgueiras é jornalista, crítica de cinema e mãe da Clara. Nasceu no Rio, mas adora o interior do Brasil e não vive sem café. Falta-lhe o ar quando não escreve, não viaja e quando não tem sol.