‘Deu ruim! Tô no vermelho’

tô no vermelho
Deu ruim...tô no vermelho

Meu pai era perdulário. E minha mãe, prega até hoje sobre a importância de economizar. Fiquei no meio do caminho, tendendo a mimetizar os ensinamentos maternos.

Lembram do Plano Collor, quando houve o sequestro da poupança de milhões de brasileiros? O negócio da família por pouco não fechou as portas. A expressão “Deu ruim, tô no vermelho” nunca teve tanta concretude lá em casa. Ali, aprendi de fato o valor de me planejar, não acumular dívidas, poupar, ter foco no porvir. Mas o que eu, uma estudante à época, poderia fazer para viabilizar esse futuro? Estudar. Foi o que fiz. Afinal, acumular conhecimento foi e continua sendo algo “insequestrável”. E hoje, em que os tempos permanecem mais bicudos, em escala planetária, o conselho vale mais ainda.

Foca na barata do Kafka

A nova História Social nos mostra, a partir da análise do cotidiano, como cada sociedade organiza valores e sua cultura ao longo do tempo. E como nos adaptamos ao contexto de acordo com as mudanças em curso. A História é miúda, coloca uma lupa sobre homens e mulheres comuns, na relação entre a vida pública e a privada. Gente como a gente e seus rituais comezinhos e banais: de que forma amamos, como poupamos, como consumimos, nos deslocamos para o trabalho, o que comemos, como criamos laços. Sua mãe costumava vasculhar suas tranqueiras? Pois, a mãe de Kafka não fazia por menos. O hábito de dona Julie de revirar as coisas do filho fez o autor de “A Metamorfose” e “O Processo” buscar algum sossego para escrever em quartinhos de pensões, depois de sair do trabalho numa seguradora. Quando sua mãe ameaçar sua privacidade, não pense “Deu ruim”. Foca na barata do Kafka. É na crise que se pode gerar grandes soluções… ou obras.

Jean-Paul Sartre, aquele filósofo caolho, que pitava cachimbo, nunca pensou em juntar a escova de dente com Simone de Beauvoir. Quero dizer, eles moraram juntos, em quartos de hotéis, e escreviam nas mesas dos cafés parisienses. Mas nunca passou pela cabeça do guru do Existencialismo comprar uma casa na banlieue de Paris com a autora do clássico “O Segundo Sexo”. Ou um apezinho que fosse. A propriedade privada era coisa de burguês, dizia para despistar a amante. Antevejo a cena: o filósofo, que cunhou a frase “o homem está condenado à liberdade”, dizendo para a chique Simone: “Chérie, deu ruim, tô no vermelho”.

Já pensou: jamais escolher a cor das cortinas, o revestimento do sofá, a estampa das xícaras ou o sabonete do banheiro? No entanto, há vantagens. Nunca mais lavar a louça, tirar o pó das prateleiras, fazer a cama. Simone era uma intelectual. Mas gostava de brincar de casinha. Cansou-se dos quartos de aluguel. Comprou com suas economias um apartamento. Quase uma quitinete. E lançou-se com gosto à decoração de seu cafofo. Ela mesma explicou: “Pus cortinas vermelhas nas janelas, comprei luminárias de bronze verde; suspendi nas paredes e na grossa trave do teto objetos trazidos de minhas viagens”. Deve ter espalhado flores, abarrotado as estantes com seus livros e organizado seus discos. Pensadora sim, mas dona de casa também. Por que não?

Hábitos da vida miúda

Mudanças comportamentais são difíceis. Ainda mais se estamos numa zona de conforto. Mas, pensando bem, mesmo quando não estamos. Romper com algo, ainda que ruim, é penoso, pois a tendência é a gente encontrar equilíbrio mesmo em posições nada confortáveis ou saudáveis. Como sobre um salto agulha. O que provoca dores horríveis no pé. A Sarah Jessica Parker, a estrela de “Sexy & the City”, foi proibida pelo médico de usar salto pelo excesso de horas que passava sobre eles: 18h.

Mas voltando às guinadas da vida miúda (plano em que tomamos decisões que sempre impactam a nossa sobrevivência e a do planeta a partir de pequenos gestos e ações. Sobretudo em tempos em que o sinal vermelho acendeu e devemos administrar de forma sustentável dinheiro, tempo e os escassos recursos naturais). A filha adolescente, dia desses, pediu um abraço, coisa completamente fora da caixa para uma adolescente, um ser atormentado por definição, sempre refém da aprovação do grupo. Pois, justo naquela fase de negação a tudo que tenha mínima semelhança com a fase infantil, em que tudo é “mico”, ela pede um chamego. Eu, que estava fazendo o jantar, na beira do fogão, pergunto: “Aí, tem, o que foi, a notícia é tão ruim assim?”. “É que eu trouxe o boletim… deu ruim, mãe, tô no vermelho”. A verdade é que tem coisas que nunca mudam.

Por Roni Filgueiras

Roni Filgueiras é jornalista, crítica de cinema e mãe da Clara. Nasceu no Rio, mas adora o interior do Brasil e não vive sem café. Falta-lhe o ar quando não escreve, não viaja e quando não tem sol.